Aquilo que move imediatamente intercepta nossa atenção priorizando o foco em detrimento do que não se move. Esta predileção do espectro focal para o movimento é da natureza de todas as criaturas, inclusive da dos seres humanos. Estamos todos mais sintonizados com o animado do que com o inanimado; nós estamos ligados ao movimento desde o início. De fato, a animação está no cerne do engajamento de cada criatura com o mundo, porque é dentro e através do movimento que a vida de cada uma delas- para emprestar a frase de Husserl da primeira epígrafe- adquire realidade [1]. (SHEETS-JOHNSTONE, M., 2011).
Uma questão fundamental na aproximação entre dança e produção audiovisual está ligada à inscrição do movimento. Neste sentido, desde as pesquisas precursoras de Étienne-Jules Marrey e Eadweard Muybridge sobre a reprodução e análise do movimento animal com as cronofotografias, até as possibilidades oferecidas pelos aparatos tecnológicos do motion capture [2] e do Kinect [3], a inscrição do movimento em superfícies bidimensionais tem sido um constante objeto de estudo.
A afinidade entre o cinema nos seus primórdios e a dança pode ser constatada, por um lado, na proliferação de produções em que a dança era a atração (principalmente até 1904, início do cinema narrativo) dos filmes de Edison, dos irmãos Pathé, dos irmãos Lumière e de Mielès. Por outro lado, artistas da dança também se aproximaram do cinema; um exemplo fundamental dessa aproximação está na atuação de uma das pioneiras da dança moderna, Loie Fuller (1862–1928).
“Viaje a la Luna”, de Georges Méliès (1902)
Fuller trilhou uma trajetória incomum, atuando incialmente como atriz infantil, tornou-se, posteriormente, dançarina e coreógrafa de shows de variedades, o que lhe permitiu desenvolver técnicas próprias de criação de movimento. Norte-Americana, Fuller encontrou um ambiente mais receptivo para seu trabalho em Paris, onde forjou seu caminho na dança, incorporando à sua produção não só elementos da cultura popular, mas também recorrendo às tecnologias mais avançadas da época. Seu ecletismo traduziu-se, tanto no relacionamento com artistas representantes de movimentos artísticos (Art Nouveau, do Futurismo, do Simbolismo) nas suas diversas linguagens e manifestações, quanto na síntese que realizava em cena.
Nos anos de 1890, levou a dança popular de saias, a skirt dance [4], para os palcos como estrutura para um espetáculo em que a dança acontecia como produto da relação entre seu corpo, o tecido e a luz. A figura do corpo em cena não se distinguia do tecido banhado de luz, sendo tal dança caracterizada por um fluxo de metamorfoses, em uma concepção abstrata do movimento que ficou conhecida como Serpentine Dance.
“Danse Serpentine – Loie Fuller” – This was filmed in 1896 by the Lumiere brothers.
figura 1- Cartão-postal de Loie Fuller, impresso pela Reutlinger Prints no final do século XIX. Imagem pertencente ao arquivo do Museu Victoria and Albert de Londres.
O pioneirismo da artista norte-americana chegou também ao campo das artes multimidiáticas, com a invenção de aparatos de iluminação e figurinos com próteses que estendiam o movimento do corpo em cena. Fuller desenvolveu a utilização da luz elétrica na iluminação cênica, realizando experiências com misturas de gases para criar efeitos luminosos coloridos com a ajuda de Thomas Edison. Com a Serpentine- dance, Fuller gerou um tipo de meme [5], ou viral da dança. Seu figurino amplificava seus movimentos, e refletia os efeitos luminosos, configurando uma aparição dançante tão mágica e hipnotizante para os padrões da época, que inspirou muitas outras dançarinas e cineastas a produzirem suas versões.
Em 1896, os irmãos Lumière filmaram Loie Fuller apresentando sua Serpentine Dance. Para conseguir uma transposição, para o cinema, do efeito que Fuller conseguia em cena, cada frame da película do filme foi colorido manualmente. Sua imagem espalhou-se por Paris nos cartazes do Folies Bergère, tornando-a a musa da art nouveau. Em sua dança, há uma efetiva síntese entre o corpo e os aparatos cênicos, fazendo do movimento, o protagonista da cena.
figura2: Cartazes das apresentações de “La Loie Fuller” no Folies-Bergère em Paris.
Foi a russa Maya Deren (1917-1961), radicada nos EUA, quem primeiro falou sobre um cruzamento tão imbricado entre dança e cinema que prenunciaria um gênero híbrido, o dance film. Sua aproximação com a dança ocorreu por intermédio da coreógrafa, dançarina e antropóloga Katherine Dunham (precursora da dança negra e autora, em 1936, de um estudo antropológico sobre o Haiti), de quem foi assistente pessoal.
Deren viveu o pós-guerra em um dos pólos de arte de vanguarda mais articulados da época, o bairro de Greenwich Village, em N.Y., tendo convivido com outros expoentes da história da arte experimental como André Breton, Marcel Duchamp, Oscar Fischinger, John Cage, Anais Nin e Stan Brakhage. Contou, ainda, com parcerias férteis, em especial as constituídas com seu segundo marido, o fotógrafo e operador de câmara, Alexander Hammid, com quem fez seu primeiro filme e também com o músico Teiji Ito, seu terceiro marido.
A partir da experiência da realização do filme A Study of Choreography for the Camera (1945), escreveu o ensaio Choreography for Camera, no qual discorre sobre suas expectativas em relação ao gênero misto entre dança e cinema:
é meu verdadeiro desejo que o filme-dança seja rapidamente desenvolvido e que, por interesse de tal desenvolvimento, inaugure-se uma nova era de colaboração entre dançarinos e cineastas – era em que ambos convocariam suas energias criativas e talentos na direção de uma expressão integrada de arte [6]. (DEREN, 1965, p.4)
“A Study In Choreography For Camera” – Maya Deren – Experimental Movie (1945)
Esse desejo de Maya Deren não concretizou-se tão prontamente quanto ela gostaria. As possibilidades do filme-dança que ela prenunciou, têm sido exploradas desde então, sob múltiplas abordagens. Consequentemente, no esforço para delimitar o que vem a ser a natureza específica dessa prática, multiplicam-se também suas denominações, como por exemplo, Filme de dança, Dança na tela, Cinedança, Videodança (Dance film, Screendance, Cinedance, ou videodance).
O festival KINODANCE em São Petesburgo, Rússia, dedica-se a exibir e discutir o cruzamento entre dança e filme. Na sua edição de 2006, a curadora Alla Kovgan [7], incluiu, pela primeira vez, no programa do festival, além das realizações envolvendo coreógrafos, filmes e vídeos de todos os gêneros, cujo apelo coreográfico foi considerado fundamental.
Os filmes escolhidos para essa mostra diferenciaram-se do programa habitual do festival por não serem realizados exclusivamente como produto de parcerias entre coreógrafos e cineastas (ou videoartistas). Independentemente de terem sido realizados sem a colaboração de profissionais da dança, os filmes selecionados proporcionavam experiências similares àquela vivida pelo espectador de espetáculos de dança, pois neles, a expressividade cinética manifesta-se predominantemente. Kovgan denomina essa expressividade de cine-dance quality, ou qualidade de cine- dança.
Assim como Kovgan, proponho a percepção cinética como o substrato primeiro da dança, presente com grande força também na experiência audiovisual, tendo em vista a dimensão corpórea da percepção cinética envolvida na sua produção e recepção. Kovgan considera os cineastas e videoartistas citados verdadeiros coreógrafos, no que diz respeito à forma de elaborar o sentido cinético de seus trabalhos. Segundo esse pensamento, distinguem-se três categorias que se manifestam independentemente, ou em combinação, e que compreenderiam abordagens diferentes da intersecção entre a dança e o filme ou o vídeo. Estas categorias são aqui apresentadas como formas ilustradas de articular dança no corpo e na tela, para pensar um gênero focado na modulação cinética (ou na inscrição do movimento), que exibiriam características de cine-dance, segundo Kovgan.
A primeira categoria refere-se à articulação dos elementos em enquadramento, a mise-en-scène, de forma a propiciar uma sensação cinética. Kovgan cita como exemplos dessa categoria, A Arca Russa (2002) de Alexander Sokurov, I am Cuba (1964), de Mikhail Kalatozov, todos os filmes de Sergei Parajanov, Koyaanisqatsi: Life out of balance de Godfrey Reggio (1982), entre outros. Menciona ainda os trabalhos de vídeo-instalação Going Forth by Day (2002), de Bill Viola, Passage (2001) e Rapture (2003), de Shirin Neshat.
“I Am Cuba” (1964) de Mokhail Kalatozov
“Koyaanisqatsi: Life out of balance” de Godfrey Reggio
O processo coreográfico da mise-en-scène relaciona-se à criação de estruturas do movimento no espaço físico e no tempo da captação das imagens. Essa forma seria a mais próxima ao processo coreográfico de dança para o palco, já que trabalha com o desenho do movimento acontecendo no espaço físico em tempo real.
Um exemplo dessa primeira categoria está no processo de filmagem de A Arca Russa, filme de Sukorov, que foi realizado em plano-sequência único de 90 minutos. Como preparação para as filmagens, Tilman Büttner, cameraman do filme, visitou o set inúmeras vezes, praticando movimentos de seu corpo no espaço e em relação com a câmera na rota planejada, envolvendo as dezenas de salas do Museu Hermitage, em São Petesburgo. Da mesma forma, os atores e figurantes seguiram uma rígida coreografia em relação à câmera e ao espaço.
“A Arca Russa” (2002) de Alexander Sokurov
A segunda categoria refere-se à edição como recurso coreográfico ao longo dos planos. Como exemplos dessa categoria, Kovgan aponta os filmes experimentais de Slavko Vorkapiche, os de Maya Deren, bem como os video-clips Boxer de 2005, dirigido pelo britânico Ne-O com a banda Chemical Brothers e Hitchcock também de 2005, dirigido pelo Neo-Zelandêz Reuben Sutherland com a banda Phoenix Foundation. Outros exemplos incluem a montagem em filmes de artes marciais e thrillers como The Matrix (1999) dos irmãos Wachowski, ou District B13 (2004) de Pierre Morel, nos filmes de Dziga Vertov e de Sergei Eisenstein; no filme Daybreak Express (1953) de D.A. Pennebaker; e em Seasons (1979) de Artavazd Peleshian.
‘The Furies” (1934) de Slavko Vorkapich
The Boxer (2005) – Chemical Brothers
Hitchcok (2005) – The Phoenix Foundation
District B13 (2004) – Pierre Morel
Daybreak Express (1953) – D. A. Pennebaker
Season of the Year (1975) – Artavazd Peleshian
Visite: http://www.parajanov.com/seasons.html
A terceira categoria diz respeito ao trabalho coreográfico realizado a partir do uso de tecnologias cinematográficas e computacionais (independentemente, ou conjugadas) na criação de composições cinéticas. Exemplos de aplicação dessa categoria podem ser verificados em Free Radicals (1958, revisado em 1979) de Len Lye ou em Love Song (2001) de Stan Brakhage, assim como nas peças de música visual (visual music) e desenhos animados de Mary Ellen Bute e Oskar Fischinger, que se constituem em sofisticadas composições cinéticas, que geram uma dança de luz e cor.
“Free Radicals” (1958) de Len Lye
“Love Song” (2001) de Stan Brakhage
Visite: http://www.centerforvisualmusic.org/Bute.htm
Visite: http://www.centerforvisualmusic.org/Raumlichtkunst.html
Como exemplos de trabalhos que utilizam tecnologias digitais para metamorfosear corpos em formas abstratas, encontram-se as obras de Paul Kaiser [8] e Shelly Eshkar, os trabalhos de Gina Czarnecki e a instalação becoming light (2005), de Bill Viola.
Nascent / Extract – Gina Czarnecki
Ghostcatching (1999) Chor. Bill T. Jones – Digital Artwork. Paul Kaiser & Shelley Eshkar
Bill Viola
‘Becoming Light’
2005
Vídeo em Color High-Definition em display de plasma montado em parede
121 cm x 72.5 cm x 10.2 cm
Performers: John Hay, Sarah Steben
Foto: Kira Perov
Em síntese, a dança na tela envolve procedimentos em meios que incluem filme, vídeo e televisão. As três categorias apresentam particularidades comuns com outros tipos de produção audiovisual no que tange à constituição de um produto acabado e veiculado como tal (single channel). As três categorias são:
1- A coreografia da mise-en-scène e dos movimentos da câmera;
2- A coreografia criada através da edição;
3- A combinação de técnicas coreográficas com técnicas cinematográficas e/ou tecnologias computacionais no tratamento do movimento no espaço da tela.
Making of MoCap1, ou, Momp_1 (KROTOSZYNSKI; DENARDI, 2010) é um exemplo presente em meu trabalho que poderia ser considerado como pertencente à terceira categoria de cine-dance qualities, conforme enuncia Alla Kovgan.
MOMP1 – Lali Krotoszynski
No sentido que enuncia essa categoria, Momp_1 é uma vídeo-dança que realizei a partir da manipulação de vídeos de registro. Esses vídeos, a princípio, destinavam-se a documentar o processo de trabalho de ballet digitallique (o making of) no estúdio de Motion Capture, Digital Spirit em Curitiba. O sistema interativo de ballet digitallique funciona em duas etapas: na primeira, o visitante da exposição tem sua silhueta captada; e, na segunda, ele pode ver sua silhueta juntamente a outras previamente captadas, que aparecem dançando em uma tela de 16 metros de extensão. Essa dança ocorre segundo a junção de cada silhueta, com módulos de movimento, do banco de dados do sistema. Tais módulos associam-se entre si aleatoriamente para formar a sequência coreográfica de cada silhueta. Eles foram realizados através do sistema de Motion Capture, ou MoCap. As luzes presas à roupa das bailarinas enviam diferentes frequências de ondas luminosas para 16 câmeras-estéreo, formando assim um enorme círculo no estúdio. Essas câmeras tem a função de mapear todo o diâmetro da área registrada, acompanhando o deslocamento de cada articulação do corpo em movimento. O registro contínuo dos deslocamentos de cada uma das articulações durante o tempo de captação deu origem, posteriormente, ao repertório coreográfico pelos bailarinos virtuais do sistema.
Na vídeo-dança, Momp1, os recursos da edição digital foram utilizados para coreografar as imagens do processo, assim como para compor a trilha sonora a partir dos módulos musicais criados pelo músico e pesquisador Dudu Tsuda [9].
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